quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Documentário sobre Saramago concorre pelo Oscar

O documentário José e Pilar, que relata a vida do falecido escritor português José Saramago e sua esposa, a jornalista espanhola Pilar del Río, foi apresentado na última terça-feira (1º) em Nova York como parte da campanha para indicação ao Oscar.

"O filme é inovador na forma de contar a história e, ao mesmo tempo, é muito humano e universal. Tem toda a legitimidade para ser indicado e até para ganhar", disse o diretor, o português Miguel Gonçalves Mendes, em entrevista à imprensa.
José e Pilar, que teve mais de 200 horas gravadas para a produção bruta, retrata a vida profissional e pessoal do casal desde princípios de 2006 até finais de 2008, durante o processo criativo, elaboração e lançamento do romance A Viagem do Elefante.
"O filme desconstroi alguns tópicos sobre a vida do escritor", declarou Pilar del Río, que também participou da apresentação. "Não é a vida de glamour que muitos acreditam ter, os espectadores se dão conta da pressão que existe".
Foi justamente a vocação de mudar a imagem que se tem do escritor o que levou Gonçalves Mendes a dirigir o documentário, com o qual tinha a intenção de "fazer um retrato intimista do autor".
"Saramago às vezes é visto como alguém muito sério. Eu não entendia como alguém que coloca esse grau de humanidade em seus personagens podia ser o que alguns diziam que era", explicou o cineasta.
O filme foi o escolhido pelo Instituto Cinematográfico e Audiovisual português para representar Portugal no Oscar. O diretor lembrou que, na terra natal de Saramago, a obra foi vista por 30 mil pessoas, enquanto, no Brasil, o público chegou a 40 mil.
A fita já tem distribuidora nos Estados Unidos e lançamento previsto para abril, mas ainda deve ser selecionada pela Academia de Hollywood para concorrer ao Oscar, seja na categoria de Melhor Filme Estrangeiro ou de Melhor Documentário.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Livrarias recebem obra perdida de Saramago

Claraboia, romance escrito nos anos 1950 por José Saramago (1922 - 2010), chega hoje às livrarias do Brasil e de Portugal, segundo anunciou durante a Feira de Frankfurt, na semana passada, Pilar Reyes, diretora da editora Alfaguara.

Saramago enviou o livro à sua editora logo após escrevê-lo, mas a obra nunca havia sido publicada. Como ele não guardou uma cópia, o romance acabou perdido nos arquivos da editora. Claraboia só foi encontrado nos anos 1980, durante uma mudança.

Na época o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998 já era um escritor conhecido, o que despertou o interesse da editora em publicar o livro perdido, mas Saramago não autorizou.

O escritor português, no entanto, deu a opção a seus herdeiros de autorizar a publicação após sua morte.

sábado, 18 de junho de 2011

Saramago: um ano após a morte do escritor

A viúva do escritor português José Saramago disse à Lusa que as cinzas serão colocadas "em frente ao rio Tejo, em frente à Casa dos Bicos", espaço onde funcionará a Fundação José Saramago.

"Uma cerimónia que se pretende simples mas solene onde será lido por Lídia Jorge um texto seu -  "Palavras para Lisboa". E que será encerrada, com o presidente da Câmara de Lisboa e os Toca a Rufar", explicou.

"Sincero, íntimo, aberto, mas solene com a solenidade das grandes coisas e das coisas íntimas", afirmou.

Questionada sobre a partilha da memória de Saramago entre Lisboa e Lanzarote (no arquipélago espanhol das Canárias), Del Rio afirmou que "por onde se passa, vai-se deixando memória".

Cinzas estão em Lisboa


"São os lugares que nos configuram e nós configuramos o lugar. Lanzarote foi-o para Saramago. Ele esteve ali e mudou o seu estilo literário quando esteve ali. Nada é gratuito quando se vive intensamente", afirmou.

Fonte da Fundação José Saramago disse à Lusa que as cinzas do escritor "encontram-se em Lisboa, num lugar privado".

A cerimónia de deposição, organizada em conjunto pela fundação e pela Câmara Municipal de Lisboa, está marcada para as 11:00, e conta com a presença de amigos, familiares e representantes de instituições públicas.

Oliveira da terra natal do escritor


Esta semana chegou da Azinhaga do Ribatejo, aldeia natal de Saramago, a oliveira centenária que o escritor refere no livro "As Pequenas Memórias" (2006) e que foi plantada na quinta feira no Campo das Cebolas.

Será junto a ela que serão depositadas as cinzas do escritor.

Ainda segundo a fundação, junto à oliveira ficará um banco de jardim - "para que as pessoas ali se possam sentar, recordar o escritor ou ler as suas obras" - e uma placa com a frase : "Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia", retirada do romance "Memorial do Convento".

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Cinzas de Saramago serão depositadas junto à Casa dos Bicos

Cinzas de Saramago serão depositadas junto à Casa dos Bicos


A Fundação Saramago revelou esta quinta-feira que as cinzas do escritor português José Saramago vão ser depositadas no dia 18 de Junho, pelas 11 horas, junto à Casa dos Bicos, em Lisboa.

A cerimónia, que terá lugar precisamente no dia em que se assinala o primeiro aniversário da morte do escritor, «não será de despedida, porque há pessoas a quem não se pode dizer adeus», disse a Fundação.

As cinzas ficarão no Campo das Cebolas junto a uma oliveira de Azinhaga do Ribatejo, de onde é natural Saramago, junto a um banco de jardim e a uma placa com a frase «Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia», do seu romance «Memorial do Convento».

A cerimónia contará com a presença de Jorge Vaz e Carvalho, da escritora Lídia Jorge e do grupo de percussão Tocá Rufar, e será encerrada pelo presidente da Câmara de Lisboa, António Costa.

Para além desta homenagem, vai haver lugar a outras iniciativas:

Dia 17: Apresentação dos livros «Palavras para José Saramago», «O silêncio da Água», de Saramago, e «A última entrevista de José Saramago», de José Rodrigues dos Santos, nos Paços do Concelho, em Lisboa.

Dia 18: Exibição do documentário «José & Pilar», de Miguel Gonçalves Mendes, com a presença da mulher de Saramago, Pilar del Rio, na Cinemateca Portuguesa.

Dia 19: Espectáculo «As sete últimas palavras de Cristo na cruz», com música de Haydn, textos de Saramago e encenação da realizadora Teresa Villaverde, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Também em Espanha, no dia 14, a Casa da América, em Madrid, terá o espectáculo «Vozes de Mulher na Obra de Saramago», com a participação de Pilar del Río, Pilar Bardem, Aitana Sánchez-Gijon e María Pagés.

Recorde-se que Saramago, Nobel da Literatura, morreu a 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

‎"A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver".

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Obra humana

Deus e o Diabo estão dentro de nós: aí nasceram e aí vivem. O bem e o mal são obra humana. Não posso acreditar num Deus que não existe ou que nunca se deu a conhecer. Eu não necessito de Deus. Nunca tive nenhuma crise religiosa. Vivi o meu ateísmo com uma tranquilidade total. E digo a mim mesmo: nasceste, estás a viver, morrerás e acabou-se.

El Universal, México D. F., 16 de Maio de 2003
In José Saramago nas Suas Palavras

quinta-feira, 31 de março de 2011

Saramago homenageado hoje no México


A cerimónia -- durante a qual será lido um texto inédito do escritor português sobre Maria Madalena -- conta com a participação da viúva do escrito, Pilar del Río, e da actriz e ativista social Ofelia Medina, da jornalista e activista de direitos humanos Lydia Cacho, da soprano mexicana Lourdes Ambriz, da cantora de rock Ely Guerra e das atrizes de teatro e cinema Irene Azuela e Clarissa Malheiros.
A homenagem ao autor falecido a 18 de junho de 2010, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1998, decorre no Palácio das Belas Artes, na capital mexicana.
A direção é de António Castro, o cenário de Mónica Raya e o desenho de luzes de Victor Zapatero.
António Castro dirigiu José Saramago e o ator Gale García Bernal no espetáculo "As Intermitências da Morte", que foi apresentado em 2006 no Teatro Diana de Guadalajara, durante a Feira Internacional do Livro.
Em declarações à agência Efe, Pilar del Río disse que o livro "Ensaio sobre a Lucidez", de José Saramago, antecipou o que está a passar-se em alguns países árabes, onde o povo conseguiu derrubar ditadores.
Editado em 2004, "Ensaio sobre a Lucidez" narra a história de um povo que decide votar em branco nas eleições municipais, provocando as suspeitas e o termos de uma rebelião do governo no poder.
Pilar del Río referiu-se a uma fragmento do texto em que os cidadãos permanecem durante alguns doas na principal praça da cidade conseguindo derrubar um governador e quando regressam à vida quotidiana organizam-se e limpam o lugar.

Pilar diz que Saramago antecipou acontecimentos nos países árabes

Para Pilar del Río, viúva de José Saramago, a obra do escritor português “Ensaio sobre a lucidez”, de 2004, antecipa o que está a acontecer em alguns países árabes.

“Saramago disse sempre que o poder da cidadania é único poder legítimo. Foi antecipatório de muitas coisas que estão a acontecer agora nos países árabes”, disse Pilar aos jornalistas durante a sua participação no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, que exibe o documentário “José e Pilar” fora da competição.

Em “Ensaio sobre a lucidez”, José Saramago escreveu a história de um povo que nas eleições do seu país optou por votar em branco, surpreendentemente e sem ter dado qualquer sinal prévio de que isso fosse acontecer. Não satisfeito com os resultados, o poder político convoca novas eleições e os votos em branco repetem-se, levantando assim as suspeitas do governo que decide desencadear uma vasta operação policial para descobrir de onde surgiu o movimento. São questões sobre a democracia e as ditaduras que Saramago levanta e que Pilar del Río acredita serem reflexões da realidade dos dias de hoje.

Jornalista e tradutora da obra de Saramago, Pilar defendeu em Guadalajara que o escritor não foi um visionário, mas sim um intelectual que, à custa de muita reflexão e observação, conhecia muito bem as falhas do mundo.

“Era um homem que pensava, que via o mundo e sabia onde estavam as suas falhas, ele sabia que não havia uma crise económica mas sim moral e que por isso vamos demorar muito tempo a conseguir sair dela”, contou Pilar sobre o Prémio Nobel da Literatura.

Pilar del Rio esteve a promover o documentário que retrata a vida do escritor e da relação de amor e trabalho que tinha consigo, acompanhando o casal na escrita e na divulgação do livro "Viagem do elefante”.

terça-feira, 29 de março de 2011

António Ferreira leva «Embargo» aos Estados Unidos

O cineasta português António Ferreira vai desloca-se aos Estados Unidos para apresentar a sua longa-metragem no «27th Chicago Latino Film Festival», que decorrerá de 1 a 14 de Abril, revelou à agência Lusa fonte da produção.

Baseado no conto homónimo de José Saramago, inserido na obra «Objecto Quase», o filme teve a sua estreia comercial em Portugal em Setembro passado e tem sido exibido em festivais de vários países, designadamente em França, Itália, Brasil, Espanha, Suécia e Canadá.

Em Portugal, «Embargo» já ganhou dois prémios: a Menção Honrosa do Júri Internacional no Fantasporto 2010 e o Prémio de Melhor Argumento Adaptado nos XVII Caminhos do Cinema Português 2010. 

Fascinado pela escrita de José Saramago, o cineasta António Ferreira transportou consigo a ideia de um filme durante 15 anos, que acabou por concretizar em «Embargo», que se inspira na crise petrolífera.

A premência em adaptar aquela obra do Prémio Nobel da Literatura surgiu quando vivenciou em meados de 2008 as consequências de uma greve dos camionistas, com as longas filas que se formavam para abastecer as viaturas de combustível, e a ruptura de stocks alimentares nos supermercados. 

Em «Embargo», vive-se numa época em que não há combustíveis, os supermercados entram em ruptura. No meio deste caos, sobrevive um homem, «Nuno», que desespera por vender uma invenção electrónica e vive o drama de estar misteriosamente preso dentro do carro.

Para protagonista deste filme, António Ferreira escolheu Filipe Costa, que se iniciou como actor no teatro universitário de Coimbra e foi fundador das bandas musicais «Bunnyranch» e «Sean Riley & The Slowriders». Do elenco de «Embargo» fazem parte também os atores Cláudia Carvalho, Pedro Diogo, Fernando Taborda, José Raposo, Miguel Lança e Eloy Monteiro.

 

sexta-feira, 25 de março de 2011

Visita guiada à ilha de Saramago

Todas as tardes, em Lanzarote, nas ilhas Canárias, José Saramago saía para dar um passeio. Gostava de o fazer porque ia pensando à medida que caminhava. Um dia, enquanto estava a escrever Ensaio sobre a Cegueira, no ano de 1993, quando ainda não se usavam telemóveis, saiu por volta das seis da tarde. Nesse dia Pilar del Río, a sua mulher, não o acompanhou porque tinha a mãe, de visita, lá em casa. As horas passaram. José não regressava.

Quando eram quase dez horas da noite, José Saramago apareceu em casa. Completamente sujo, amachucado e com pequenas feridas. Contou que tinha subido até ao cimo da Montaña Blanca e que descer tinha sido muito complicado. Fê-lo pelos sulcos de água. Esta é a quinta montanha de Lanzarote em termos de altitude, o cume fica a 595 metros. Para subir e descer, Saramago teve de se agarrar ao mato. Não há estrada, nem caminho, nem trilho. Tinha as mãos ensanguentadas.

Pilar queria matá-lo. Só dizia: “Ele não se matou a subir à Montaña Blanca mas eu estou a ponto de o matar.” Durante vários dias o escritor ficou sem se poder mexer. Quando se queixava de alguma dor, a mulher só lhe dizia: “Aguenta! Aguenta!” E Saramago explicava: “É que eu subi lá a cima!” E ela respondia: “Mas que bem.” Foi a primeira vez que fez isso e a última. Foi um impulso. A montanha e o homem. “Ele era tão transgressor em todas as normas, por que não fazê-lo?”

quinta-feira, 17 de março de 2011

Casa e Biblioteca Saramago abrem amanhã em Lanzarote

A Casa e a Biblioteca de José Saramago em Lanzarote vão abrir portas esta sexta-feira, com presença do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, e da vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto.

Amanhã cumprem-se nove meses sobre a morte do autor. Nesse dia, abrem estes dois espaços para que os seus amigos, os seus leitores, as pessoas que precisem de ver como, onde e de que maneira trabalhava e vivia o seu Escritor, possam percorrer os espaços que habitou a maior parte dos seus últimos anos de vida… e onde escreveu livros memoráveis, escreve a organização.
Na cerimónia de abertura, a directora da Casa Pessoa, Inês Pedrosa, vai ler um fragmento de «O Ano da Morte de Ricardo Reis» em português que, posteriormente, será reproduzido em castelhano por uma artista canária.
A presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Rio, vai explicar os motivos pelos quais abre ao público «um espaço tão íntimo».
A partir de dia 21 de Março, das 10:00 às 14:00 Horas, a Casa e a Biblioteca em Lanzarote poderão ser visitados em grupos reduzidos (não mais do que 15 pessoas), a cada meia hora. A Casa estará aberta ao público de segunda-feira a sábado, inclusive. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

"O Silêncio da Água", novo livro de José Saramago para crianças


11/03/11

fjs
Nas margens do rio Tejo, um menino tenta pescar um grande peixe. No momento em que o deixa escapar, começa para ele o despertar da lucidez. A partir de uma recordação de infância, José Saramago elabora uma fábula de grande beleza e sabedoria que Manuel Estrada ilustra maravilhosamente.
O Silêncio da Água é um fragmento de As Pequenas Memórias (2006), volume que reúne as memórias de infância e adolescência de José Saramago. A obra significou a conclusão de um projecto previsto havia mais de vinte anos. Em 1998 Saramago afirmava: "O que quero é recuperar, saber, reinventar a criança que fui, que é o pai da pessoa que sou. Para além do pai e da mãe biológicos, eu diria que o pai espiritual do homem que sou é a criança que fui».
O Silêncio da Água estará disponível em espanhol e catalão já no mês de Março, publicado pela Libros del Zorro Rojo. Em Portugal e no Brasil será editado brevemente pela Editorial Caminho e pela Companhia das Letras, respectivamente.

Pelo fim dos maus tratos contra as mulheres. Eu pronuncio-me!

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Viagem ética

Realmente, a minha proposta [em A Jangada de Pedra] é romper a dicotomia Norte-Sul com uma viagem que não seria física, mas sim ética. A Europa tem de olhar o Sul como um lugar que explorou, que colonizou e tem de reverter esse dano.

“Yo no he roto con Cuba”, Rebelión, 12 de Outubro de 2003
In José Saramago nas Suas Palavras

Para ver nas paredes do Campo das Cebolas

'O heroico no ser humano é não pertencer a um rebanho." A frase do Nobel da Literatura, José Saramago, encabeça uma série "sentenças" proferidas por si ou pela sua mulher, Pilar del Rio, que desde 17 de janeiro estão graffitadas na nave do Campo das Cebolas, em Lisboa. A intervenção urbana promovida pela JumpCut, em parceria com a Dedicated Store Lisboa e apoiada pela Galeria de Arte Urbana da autarquia, fica estrategicamente ao lado da futura Fundação Saramago.
Os writers Ayer, Nomen, Nark e Pariz também desenharam outras citações: "Sempre chegamos aonde nos esperam", "Mais vale fazer asneira mas avançarmos do que não fazermos nada", "Na Sociedade atual falta-nos filosofia, precisamos do trabalho de pensar", "Sabemos muito mais do que achamos e podemos muito mais do imaginamos", "Temos de eliminar a palavra cansaço do nosso dicionário pessoal", "O caos é uma ordem por decifrar".


Fonte: http://aeiou.visao.pt/


domingo, 30 de janeiro de 2011

Um perigoso acriticismo

Acreditámos que com a democracia abandonávamos certos medos, mas trocámo-los por outro medo colectivo e geral que nada tem a ver com a tortura ou a censura. É o temor constante de perder o emprego, um medo que limita e condiciona totalmente a vida de quem o sente. E esse medo alimenta o verdadeiro governo do mundo de hoje, o poder das multinacionais que conforma tudo à sua própria lógica. Uma lógica que impõe um perigoso acriticismo que cresce como uma mancha de óleo por todo o mundo. Parece que a norma é não pensar, não reagir, não criticar.

“Saramago, el pesimista utópico”, Turia, Teruel, nº 57, 2001
In José Saramago nas Suas Palavras

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Levantado do Chão

"Acho que do chão se levanta tudo, até nós nos levantamos. E sendo o livro como é - um livro sobre o Alentejo - e querendo eu contar a situação de uma parte da nossa população, num tempo relativamente dilatado, o que vi foi todo o esforço dessa gente de cujas vidas eu ia tentar falar é no fundo o de alguém que pretende levantar-se. Quer dizer: toda a opressão económica e social que tem caracterizado a vida do Alentejo, a relação entre o latifúndio e quem para ele trabalha, sempre foi - pelo menos do meu ponto de vista - uma relação de opressão. A opressão é, por definição, esmagadora, tende a baixar, a calcar. O movimento que reage a isto é o movimento de levantar: levantar o peso que nos esmaga, que nos domina. Portanto, o livro chama-se Levantado do Chão porque, no fundo, levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é nos chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro."

publicado no jornal O Tempo em Novembro de 1981

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Quantos Haitis?

No Dia de Todos os Santos de 1755 Lisboa foi Haiti. A terra tremeu quando faltavam poucos minutos para as dez da manhã. As igrejas estavam repletas de fiéis, os sermões e as missas no auge… Depois do primeiro abalo, cuja magnitude os geólogos calculam hoje ter atingido o grau 9 na escala de Richter, as réplicas, também elas de grande potência destrutiva, prolongaram-se pela eternidade de duas horas e meia, deixando 85% das construções da cidade reduzidas a escombros. Segundo testemunhos da época, a altura da vaga do tsunami resultante do sismo foi de vinte metros, causando 600 vítimas mortais entre a multidão que havia sido atraída pelo insólito espectáculo do fundo do rio juncado de destroços dos navios ali afundados ao longo do tempo. Os incêndios durariam cinco dias. Os grandes edifícios, palácios, conventos, recheados de riquezas artísticas, bibliotecas, galerias de pinturas, o teatro da ópera recentemente inaugurado, que, melhor ou pior, haviam aguentado os primeiros embates do terramoto, foram devorados pelo fogo. Dos 275 mil habitantes que Lisboa tinha então, crê-se que morreram 90 mil. Conta-se que à pergunta inevitável “E agora, que fazer?”, o secretário de Estrangeiros Sebastião José de Carvalho e Melo, que mais tarde viria a ser nomeado primeiro-ministro, teria respondido “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. Estas palavras, que logo entraram na História, foram efectivamente pronunciadas, mas não por ele. Disse-as um oficial superior do exército, desta maneira espoliado do seu haver, como tantas vezes acontece, em favor de alguém mais poderoso.

A enterrar os seus cento e vinte mil ou mais mortos anda agora o Haiti, enquanto a comunidade internacional se esforça por acudir aos vivos, no meio do caos e da desorganização múltipla de um país que mesmo antes do sismo, desde gerações, já se encontrava em estado de catástrofe lenta, de calamidade permanente. Lisboa foi reconstruída, o Haiti também o será. A questão, no que toca ao Haiti, reside em como se há-de reconstruir eficazmente a comunidade do seu povo, reduzido não só à mais extrema das pobrezas como historicamente alheio a um sentimento de consciência nacional que lhe permitisse alcançar por si mesmo, com tempo e com trabalho, um grau razoável de homogeneidade social. De todo o mundo, de distintas proveniências, milhões e milhões de euros e de dólares estão sendo encaminhados para o Haiti. Os abastecimentos começaram a chegar a uma ilha onde tudo faltava, fosse porque se perdeu no terramoto, fosse porque nunca lá existiu. Como por acção de uma divindade particular, os bairros ricos, em comparação com o resto da cidade de Porto Príncipe, foram pouco afectados pelo sismo. Diz-se, e à vista do que aconteceu no Haiti parece certo, que os desígnios de Deus são inescrutáveis. Em Lisboa as orações dos fiéis não puderam impedir que o tecto e e os muros das igrejas lhes caíssem em cima e os esmagassem. No Haiti, nem mesmo a simples gratidão por haverem salvo vidas e bens sem nada terem feito para isso, moveu os corações dos ricos a acudir à desgraça de milhões de homens e mulheres que não podem sequer presumir do nome unificador de compatriotas porque pertencem ao mais ínfimo da escala social, aos não-ser, aos vivos que sempre estiveram mortos porque a vida plena lhes foi negada, escravos que foram de senhores, escravos que são da necessidade. Não há notícia de que um único haitiano rico tenha aberto os cordões ou aliviado as suas contas bancárias para socorrer os sinistrados. O coração do rico é a chave do seu cofre-forte.
Haverá outros terramotos, outras inundações, outras catástrofes dessas a que chamamos naturais. Temos aí o aquecimento global com as suas secas e as suas inundações, as emissões de CO2 que só forçados pela opinião pública os governos se resignarão a reduzir, e talvez tenhamos já no horizonte algo em que parece ninguém querer pensar, a possibilidade de uma coincidência dos fenómenos causados pelo aquecimento com a aproximação de uma nova era glacial que cobriria de gelo metade da Europa e agora estaria dando os primeiros e ainda benignos sinais. Não será para amanhã, podemos viver e morrer tranquilos. Mas, di-lo quem sabe, as sete eras glaciais por que o planeta passou até hoje não foram as únicas, outras haverá. Entretanto, olhemos para este Haiti e para os outros mil Haitis que existem no mundo, não só para aqueles que praticamente estão sentados em cima de instáveis falhas tectónicas para as quais não se vê solução possível, mas também para os que vivem no fio da navalha da fome, da falta de assistência sanitária, da ausência de uma instrução pública satisfatória, onde os factores propícios ao desenvolvimento são praticamente nulos e os conflitos armados, as guerras entre etnias separadas por diferenças religiosas ou por rancores históricos cuja origem acabou por se perder da memória em muitos casos, mas que os interesses de agora se obstinam em alimentar. O antigo colonialismo não desapareceu, multiplicou-se numa diversidade de versões locais, e não são poucos os casos em que os seus herdeiros imediatos foram as próprias elites locais, antigos guerrilheiros transformados em novos exploradores do seu povo, a mesma cobiça, a crueldade de sempre. Esses são os Haitis que há que salvar. Há quem diga que a crise económica veio corrigir o rumo suicida da humanidade. Não estou muito certo disso, mas ao menos que a lição do Haiti possa aproveitar-nos a todos. Os mortos de Porto Príncipe foram fazer companhia aos mortos de Lisboa. Já não podemos fazer nada por eles. Agora, como sempre, a nossa obrigação é cuidar dos vivos.

José Saramago
(Texto publicado em O Caderno de Saramago a 08 de Fevereiro de 2010)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Membros de um rebanho

Sempre acreditei que, para além da antropofagia directa, há outra forma de devorar o próximo: a exploração do homem pelo homem. Neste sentido, a história da humanidade é a história da antropofagia. Isto obriga-nos a um compromisso activo. Em primeiro lugar, temos a obrigação de não permitir que nos ceguem, pois se nos deixam cegos, comportar-nos-emos, ainda mais do que agora, como membros de um rebanho, um rebanho que avança até ao suicídio.

“Saramago, el pesimista utópico”, Turia, Teruel, nº 57, 2001
In José Saramago nas Suas Palavras

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Cinzas de Saramago em oliveira

Uma oliveira guardará as cinzas de José Saramago, no memorial a inaugurar diante da Casa dos Bicos, de Lisboa, a 18 de Junho. A data, que assinala o primeiro aniversário da morte do escritor, seria também ideal, segundo os responsáveis da Fundação Saramago, para a abertura da sede na Casa dos Bicos.
Várias iniciativas serão anunciadas ao longo de 2011, ano em que é provável a publicação do texto incompleto deixado pelo escritor, como disse Zeferino Coelho, editor e amigo do Nobel.
Já outra fundação, a Calouste Gulbenkian, celebra agora outra figura maior da literatura: a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen é a base de um congresso internacional nos próximos dias 27 e 28. A Biblioteca Nacional, por outro lado, recebe da família da poetisa o espólio no dia 26, e inaugura na mesma data uma grande exposição sobre a sua vida e obra.


quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Em despedida, Temer cita Saramago e diz dever tudo à Câmara

Em seu pronunciamento de despedida, o presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, citou uma frase do escritor português José Saramago. "Não sou o autor de meus livros. Os personagens que me fizeram o autor", disse. Segundo Temer, que discursou por cerca de 15 minutos na tarde desta quarta-feira na Casa, seus amigos são os responsáveis por ele ter chegado onde chegou, e não méritos próprios. Ele está de saída da Casa por ter sido eleito vice-presidente da República na eleição deste ano.

O adeus de Bloom a Saramago na "Time"

A edição do mês de Dezembro da revista Time, na qual é apresentada a lista de personalidades do ano, relembra José Saramago através das palavras de Harold Bloom.

José Saramago, Autor, 87 anos
José Saramago, alguém que lembro com grande afecto, será uma parte permanente do canône ocidental. Foi o primeiro escritor de língua portuguesa a vencer o Prémio Nobel e é provavelmente mais conhecido por Ensaio sobre a Cegueira - uma interessante alegoria antitotalitarista. Os seus muitos romances possuem uma surpreendente variedade e sensibilidade, e uma versatilidade que abarca a tragicomédia e algo parecido com os antiquados quest romances. Da sua obra, destaco como favoritos, a comédia negra de O Evangelho Segundo Jesus Cristo e o horror de Ensaio sobre a Cegueira. Mas tenho um prazer especial no regresso às suas obras mais cómicas como A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa e, principalmente, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Em todas as suas maravilhosas meditações em torno da tristeza nas nossas vidas, está sempre presente o espírito do riso a acenar-nos para que prossigamos. O que ele conseguiu alarga a possibilidade da existência.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O que caiu no esquecimento

Nos meus livros, a História não aparece como reconstrução arqueológica, como se tivesse viajado ao passado, tirado uma fotografia e relatasse o que mostra essa imagem. O que eu faço nada tem a ver com isso. Eu sei ou creio saber o que se passou antes e revejo-o à luz do tempo em que vivo. Quando me perguntam se escrevo novelas históricas, respondo que não, pelo menos não no sentido oitocentista da palavra tal como o faziam Alexandre Dumas ou Walter Scott ou Flaubert em Salammbô. A minha intenção é a da procura do que caiu no esquecimento pela História.

“Con el escritor portugués José Saramago: ‘La escritura es otra forma de realidad”, El País (Suplemento Cultural), Montevideo, 24 de Junho de 1994

In José Saramago nas Suas Palavras

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores.(…) Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias(…) - JANGADA DE PEDRA -

BIOGRAFIA

José Saramago nasceu na vila de Azinhaga, no concelho da Golegã, de uma família de pais e avós agricultores. A sua vida é passada em grande parte em Lisboa, para onde a família e muda em 1924 – era um menino de apenas dois anos de idade. Dificuldades económicas impedem-no de entrar na universidade. Demonstra desde cedo interesse pelos estudos e pela cultura, sendo que esta curiosidade perante o Mundo o acompanhou até à morte. Formou-se numa escola técnica. O seu primeiro emprego foi de serralheiro mecânico. Fascinado pelos livros, visitava, à noite, com grande frequência, a Biblioteca Municipal Central — Palácio Galveias.
Aos 25 anos, publica o primeiro romance Terra do Pecado (1947), no mesmo ano de nascimento da sua filha, Violante, fruto do primeiro casamento com Ilda Reis – com quem se casou em 1944 e com quem permaneceu até 1970. Nessa época, Saramago era funcionário público. Em 1988, casar-se-ia com a jornalista e tradutora espanhola María del Pilar del Río Sánchez, que conheceu em 1986 e ao lado da qual viveu até à morte. Em 1955 e para aumentar os rendimentos, começou a fazer traduções de Hegel, Tolstoi e Baudelaire, entre outros.
Depois de Terra do Pecado, Saramago apresentou ao seu editor o livro Clarabóia que, depois de rejeitado, permanece inédito até à data de hoje. Persiste, contudo, nos esforços literários e, dezanove anos depois, funcionário,então, da Editorial Estudos Cor, troca a prosa pela poesia, lançando Os Poemas Possíveis. Num espaço de cinco anos, publica, sem alarde, mais dois livros de poesia: Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975). É quando troca também de emprego, abandonando a Estudos Cor para trabalhar no Diário de Notícias (DN) e, depois, no Diário de Lisboa. Em 1975, retorna ao DN como Director-Adjunto, onde permanece por dez meses, até 25 de Novembro do mesmo ano, quando os militares portugueses intervêm na publicação (reagindo ao que consideravam os excessos da Revolução dos Cravos) demitindo vários funcionários. É, hoje, controverso o modo ditatorial como saneou jornalistas do DN. Demitido, Saramago resolve dedicar-se apenas à literatura, substituindo de vez o jornalista pelo ficcionista: "(…) Estava à espera de que as pedras do puzzle do destino – supondo-se que haja destino, não creio que haja – se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: "Não vou procurar trabalho", disse Saramago em entrevista à revista Playboy, em 1995.[2]
Da experiência vivida nos jornais, restaram quatro crónicas: Deste Mundo e do Outro, 1971, A Bagagem do Viajante, 1973, As Opiniões que o DL Teve, 1974 e Os Apontamentos, 1976. Mas não são as crónicas, nem os contos, nem o teatro os responsáveis por fazer de Saramago um dos autores portugueses de maior destaque - esta missão está reservada aos seus romances, género a que retorna em 1977.
Três décadas depois de publicado Terra do Pecado, Saramago retornou ao mundo da prosa ficcional com Manual de Pintura e Caligrafia. Mas ainda não foi aí que o autor definiu o seu estilo. As marcas características do estilo Saramaguiano só apareceriam com Levantado do Chão (1980), livro no qual o autor retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo.
Dois anos depois de Levantado do Chão (1982), surge o romance Memorial do Convento, livro que conquista definitivamente a atenção de leitores e críticos. Nele, Saramago misturou factos reais com personagens inventados: o rei D. João V e Bartolomeu de Gusmão, com a misteriosa Blimunda e o operário Baltazar, por exemplo. O contraste entre a opulenta aristocracia ociosa e o povo trabalhador e construtor da história servem de metáfora à medida da luta de classes marxista. A crítica brutal a uma Igreja ao serviço dos opressores inicia a exposição de uma tentativa de destruição do fenómeno religioso como devaneio humano construtor de guerras.
De 1980 a 1991, o autor trouxe a lume mais quatro romances que remetem a factos da realidade material, problematizando a interpretação da "história" oficial: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) - sobre as andanças do heterónimo de Fernando Pessoa por Lisboa; A Jangada de Pedra (1986) - em que se questiona o papel Ibérico na então CEE através da metáfora da Península Ibérica soltando-se da Europa e encontrando o seu lugar entre a velha Europa e a nova América; História do Cerco de Lisboa (1989) - onde um revisor é tentado a introduzir um "não" no texto histórico que corrige, mudando-lhe o sentido; e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) - onde Saramago reescreve o livro sagrado sob a óptica de um Cristo que não é Deus e se revolta contra o seu destino e onde, a fundo, questiona o lugar de Deus, do cristianismo, do sofrimento e da morte. (sendo esta a sua obra mais controversa).
Nos anos seguintes, entre 1995 e 2005, Saramago publicou mais seis romances, dando início a uma nova fase em que os enredos não se desenrolam mais em locais ou épocas determinados e personagens dos anais da história se ausentam: Ensaio Sobre a Cegueira (1995); Todos os Nomes (1997); A Caverna (2001); O Homem Duplicado (2002); Ensaio Sobre a Lucidez (2004); e As Intermitências da Morte (2005). Nessa fase, Saramago penetrou de maneira mais investigadora os caminhos da sociedade contemporânea, questionando a sociedade capitalista e o papel da existência humana condenada à morte.
Saramago faleceu no dia 18 de Junho de 2010,[3] aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde residia com a mulher Pilar del Rio, vítima de leucemia crónica.[4] O escritor estava doente havia algum tempo e o seu estado de saúde agravou-se na sua última semana de vida.
O seu funeral teve Honras de Estado, tendo o seu corpo sido cremado no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
Debeladas as controvérsias a que nunca se furtou e que interventivamente procurava, a marca que ficará na mente e coração do Povo Português será o legado que José Saramago deixará e isso compete à história decidir.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Câmara de espelhos


Muitas vezes são as omissões as que dariam um sentido novo a factos que parecem não ter mais que apenas um motivo. A verdade é que vivemos numa câmara de espelhos na qual tudo se reflecte em tudo e em que tudo é, por sua vez, o reflexo de si mesmo. Quando nos pintam apenas uma imagem sem ter em conta o espelho, essa imagem está incompleta.

“José Saramago. Escritor. ‘Ninguna verdad es definitiva”, La Maga, Buenos Aires, 30 de marzo de 1994
In José Saramago nas Suas Palavras

sábado, 4 de dezembro de 2010

Livro que Saramago deixou inacabado será publicado em 2011

Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas fala sobre a fabricação de armas

A viúva de José Saramago, Pilar del Río, informou que pretende lançar o livro que o escritor deixou inacabado. Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas deve chegar às lojas em 2011. O autor português morreu em junho deste ano.

Apesar de estar pela metade, Pilar acredita que a mensagem do livro é forte e importante. Segundo informações do Segundo Caderno, a obra conta a história de um pai de família que trabalha em uma fábrica de armas. Seu ofício "consiste em fazer uma arma que vai matar outra pessoa", explica Pilar.

— Será publicado porque são páginas suficientemente fortes, belas, úteis e necessárias — pontuou a viúva.

DIARIO.COM.BR

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Uma demonstração explícita e evidente

Ou a razão, no homem, não faz mais do que dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é, também indubitavelmente, o mais irracional de todos eles. Vou-me inclinando cada vez mais para a segunda hipótese, não por ser morbidamente propenso a filósofos pessimistas, mas sim porque o espectáculo do mundo é, na minha fraca opinião, uma demonstração explícita e evidente daquilo a que chamo de irracionalidade humana.

Andrés Sorel, José Saramago. Una mirada triste y lúcida, Madrid, Algaba Ediciones, 2007
In José Saramago nas Suas Palavras

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Globalizar o pão

"Se amanhã me disserem que vão globalizar o pão não encontrareis globalizador mais entusiasta que eu. E se me disserem – e fazem-no – que vão globalizar tudo quanto milhares de milhões de seres humanos estão necessitando para viver dignamente, então asseguro-vos que me vereis convertido num seu fanático. Mas a globalização está a acrescentar miséria à miséria, fome à fome, exploração à exploração."

“Soy un relativista”, Vistazo, Guayaquil, 19 de Fevereiro de 2004
In José Saramago nas Suas Palavras

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Tal dia como o de hoje há 88 anos

Por Fundação José Saramago
Nasci numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na margem direita do rio Almonda, a uns cem quilómetros a nordeste de Lisboa. Meus pais chamavam-se José de Sousa e Maria da Piedade. José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário do Registo Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres). Só aos sete anos, quando tive de apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago…
Fui bom aluno na escola primária: na segunda classe já escrevia sem erros de ortografia, e a terceira e quarta classes foram feitas em um só ano. Transitei depois para o liceu, onde permaneci dois anos, com notas excelentes no primeiro, bastante menos boas no segundo, mas estimado por colegas e professores, ao ponto de ser eleito (tinha então 12 anos…) tesoureiro da associação académica… Entretanto, meus pais haviam chegado à conclusão de que, por falta de meios, não poderiam continuar a manter-me no liceu. A única alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola de ensino profissional, e assim se fez: durante cinco anos aprendi o ofício de serralheiro mecânico.
Mais tarde, a Biblioteca Municipal das Galveias foi a minha Universidade.
José Saramago

sábado, 13 de novembro de 2010

Eu acredito que dentro de nós há um espesso sistema de passagens e portas fechadas. Nós mesmos não abrimos as portas, porque suspeitamos que o que há do outro lado não será agradável de ver […] Vivemos numa espécie de alarme em relação a nós mesmos, que é o de, quem sabe, não querermos saber quem somos na realidade.


“Saramago: ‘Si España va bien, es una excepción, porque el mundo no va bien”, La Provincia, Las Palmas de Gran Canaria, 15 de Abril de 1998

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Muita gente me diz que sou pessimista; mas não é verdade, é o mundo que é péssimo. O ser humano limita-se na actualidade a “ter” coisas, mas a humanidade esqueceu-se de “ser”. Este último dá muito trabalho: pensar, duvidar, perguntar-se sobre si mesmo…

José Saramago

“No soy pesimista, es el mundo el que es pésimo”, El Diario Montañés, Santander, 11 de Julho de 2006

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Personalidades comentam a morte de José Saramago

"A última vez que me encontrei com Saramago foi em Penafiel, em Portugal, em novembro passado, onde ele foi homenageado, mas na verdade tenho convivido muito com ele ultimamente, pois a O2 Filmes está coproduzindo um documentários chamado José e Pilar, dirigido pelo português Miguel Mendes, sobre os últimos anos do Saramago e sua mulher. O filme é comovente de cortar os pulsos, vemos ali um homem brilhante que sabe que seu tempo está acabando e tem muita pena de morrer. O dia no qual ele pensava constantemente e que tentou adiar, chegou.

Saramago era um homem lógico, dizia que a morte é simplesmente a diferença entre o estar aqui e já não mais estar. Combatia as religiões com fúria, dizia que elas nos embaçam nossa visão, mesmo assim não consigo deixar de pensar que adoraria que neste momento ele estivesse tendo que dar o braço a torcer ao ser surpreendido por algum outro tipo de vida depois desta que teve por aqui."

A lucidez naquele grau é um privilégio de poucos, não consigo escapar do clichê mas definitvamente o mundo ficou ainda mais burro e ainda mais cego hoje."

Fernando Meirelles, diretor do longa Ensaio sobre a Cegueira (2008)

"A Academia estava aguardando a informação de quando José Saramago viria ao Rio para providenciar a organização da sua posse na Cadeira 16 de Sócio Correspondente [da ABL]. A notícia nos deixou em estado de enorme tristeza. A próxima sessão acadêmica, quinta-feira que vem, dia 24, na ABL, será dedicada à memória do grande escritor português, por quem sempre tivemos o maior respeito e admiração."

Marcos Vinicios Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

“ Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco, Como te atreves a dizer que o senhor deus está louco, Porque só um louco sem consciência dos seus actos admitiria ser o culpado directo da morte de centenas de milhares de pessoas e comportar-se depois como se nada tivesse sucedido,  salvo, afinal, que não se trate de loucura, a involuntária, a autêntica, mas de pura e simples maldade, Deus nunca poderia ser mau ou não seria deus, para mau temos o diabo, O que não pode ser bom é um deus que dá ordem a um pai para que mate e queime na fogueira o seu próprio filho só para provar a sua fé, isso nem o mais maligno dos demônios o mandaria fazer”. – CAIM –

domingo, 7 de novembro de 2010

A Maior Flor do Mundo | José Saramago



História de uma flor

Por José Saramago
Aí pelos começos dos anos 70, quando eu ainda não passava de um escritor principiante, um editor de Lisboa teve a insólita ideia de me pedir que escrevesse um conto para crianças. Não estava eu nada certo de poder desobrigar-me dignamente da encomenda, por isso, além da história de uma flor que estava a morrer à míngua de uma gota de água, fui-me curando em saúde pondo o narrador a desculpar-se por não saber escrever histórias para a gente miúda, a quem, por outro lado, diplomaticamente, convidava a reescrever com as suas próprias palavras a história que eu lhes contava. O filho pequeno de uma amiga minha, a quem tive o desplante de oferecer o livrinho, confirmou sem piedade a minha suspeita: “Realmente”, disse à mãe, “ele não sabe escrever histórias para crianças”. Aguentei o golpe e tentei não pensar mais naquela frustrada tentativa de vir a reunir-me com os irmãos Grimm no paraíso dos contos infantis. Passou o tempo, escrevi outros livros que tiveram melhor sorte, e um dia recebo uma chamada telefónica do meu editor Zeferino Coelho a comunicar-me que estava a pensar em reeditar o meu conto para crianças. Disse-lhe que devia haver um engano, porque eu nunca tinha escrito nada para crianças. Quer dizer, havia esquecido totalmente o infausto acontecimento. Mas, há que dizê-lo, foi assim que começou a segunda vida de “A maior flor do mundo”, agora com a bênção das extraordinárias colagens que João Caetano fez para a nova edição e que contribuíram de maneira definitiva para o seu êxito. Milhares de novas histórias (milhares, sim, não exagero) foram escritas nas escolas primárias de Portugal, Espanha e meio mundo, milhares de versões em que milhares de crianças demonstraram a sua capacidade criadora, não só como pequenos narradores, também como incipientes ilustradores. Afinal, o filho da minha amiga não tivera razão, o conto, de transparente simplicidade, havia encontrado os seus leitores. Mas as coisas não ficaram por aqui. Há alguns anos, Juan Pablo Etcheverry e Chelo Loureiro, que vivem na Galiza e trabalham em cinema, procuraram-me com o objectivo de fazer da “Flor” uma animação em plasticina, para a qual Emilio Aragón já tinha composto uma bela música. Pareceu-me interessante a ideia, dei-lhes a autorização que pediam e, passado o tempo necessário, inútil dizer que depois de muitos sacrifícios e dificuldades, o filme foi estreado. Eu próprio apareço nele, de chapéu e bastante favorecido na idade. São quinze minutos da melhor animação, que o público tem aplaudido em salas e festivais de cinema, como foram, no passado recente, os casos de Japão e Alasca. Como foi igualmente o prémio que acaba de lhe ser atribuído no Festival de Cinema Ecológico de Tenerife, felizmente ressurgido de uma paragem forçada de alguns anos. Chelo veio a nossa casa, trouxe-nos o prémio, uma escultura representando uma planta que parece querer ascender até ao sol e que, muito provavelmente, irá continuar a sua existência na Casa dos Bicos, em Lisboa, para mostrar como neste mundo tudo está ligado a tudo, sonho, criação, obra. É o que nos vale, o trabalho.

“ Caim mal podia acreditar no que os seus olhos viam. Não bastavam Sodoma e gomorra arrasadas pelo fogo, aqui, no sopé do monte Sinai, ficara patente a prova irrefutável da profunda maldade do senhor, três mil homens mortos só porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um suposto rival em figura de bezerro, Eu não fiz mais que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver agora quem vai castigar o senhor por estas mortes, pensou caim, e logo continuou, Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito. Algum do pó de ouro soprado pelo vento manchava as mãos de caim. Lavou-as num charco como se cumprisse o ritual de sacudir dos pés a poeira de um lugar onde tivesse sido mal recebido, montou o jumento e foi-se embora. Havia uma nuvem escura no alto do monte sinai, ali estava o senhor”. – CAIM –

sábado, 6 de novembro de 2010

EMBARGO


Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada. Pensou que a mulher esquecera de correr o cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse a voltar a dormir já, acabaria por ter o dia estragado. Faltou-lhe porém o ânimo para levantar-se, para tapar a janela: preferiu cobrir a cara com um lençol e virar-se para a mulher que dormia, refugiar-se no calor dela e no cheiro d seus cabelos libertos. Esteve ainda uns minutos à espera, inquieto, a temer a espertina matinal. Mas depois acudiu-lhe a idéia do casulo morno q era a cama e a presença labiríntica do corpo a que se encostava, e, quase a deslizar num círculo lento de imagens sensuais, tornou a cair no sono. O olho cinzento da vidraça foi-se azulando aos poucos, fitando fixo as duas cabeças pousadas na cama, como restos aquecidos de uma mudança para outra casa ou para outro mundo. Quando o despertador tocou, passadas duas horas, o quarto estava claro.
       Disse à mulher que não se levantasse, que aproveitasse um pouco mais da manhã, e escorregou para o ar frio, para a humidade indefinível das paredes, dos puxadores das portas, das toalhas da casa de banho. Fumou o primeiro cigarro enquanto se barbeava e o segundo com o café, que entretanto aquecera. Tossiu como todas as manhãs. Depois vestiu-se às apalpadelas, sem acender a luz do quarto. Na queria acordar a mulher. Um cheiro fresco de água-de-colônia avivou a penumbra, e isso fez que a mulher suspirasse de prazer quando o marido debruçou-se na cama para lhe beijar os olhos fechados. E ele sussurrou que não viria almoçar a casa.
       Fechou a porta e desceu rapidamente a escada. O prédio parecia mais silencioso que de costume. Talvez do nevoeiro, pensou. Reparara que o nevoeiro era assim como uma campânula que abafava os sons e os transformava, dissolvendo-os, fazendo deles o que fazia com as imagens. Estaria nevoeiro. No último lanço da escada já poderia ver a rua e saber se acertara. Afinal havia uma luz ainda cinzenta, mas dura e rebrilhante, de quartzo. Na berma do passeio, um grande rato morto. E enquanto, parado à porta, acendia o terceiro cigarro, passou um garoto embaçado, de gordo, que cuspiu em cima do animal, como lhe tinham ensinado e sempre via fazer.
      O automóvel estava cinco prédios abaixo. Grande sorte ter podido arruma-lo ali. Ganhara a superstição de que o perigo de lhe roubarem seria tanto maior quanto mais longe o tivesse deixado à noite. Sem nunca o ter dito em voz alta, estava convencido de que não voltaria a ver o carro se o deixasse em qualquer extremo da cidade. Ali, tão perto, tinha confiança. O automóvel apareceu-lhe coberto de gotículas, os vidros tapados de humidade. Se não fosse o frio tanto, poderia dizer-se que transpirava como um corpo vivo. Olhou os pneus segundo o deu hábito, verificou de passagem que a antena não fora partida e abriu a porta. O interior do carro estava gelado. Com os vidros embaciados, era uma caverna translúcida afundada sob um dilúvio de água. Pensou que teria sido melhor deixar o carro em sítio onde pudesse faze-lo descair para pegar mais facilmente. Ligou a ignição, e no mesmo instante o motor roncou alto, com um arfar profundo e impaciente. Sorriu, satisfeito da surpresa. O dia começava bem.
      Rua acima, o automóvel arrancou, raspando o asfalto como um animal de cascos, triturando o lixo espalhado. O conta-quilómetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua estreite e ladeada de carros parados. Que seria isto? Retirou o pé de acelerador, inquieto. Por pouco diria que lhe teriam trocado o motor por outro muito mais potente. Pisou à cautela o acelerador dominou o carro. Nada de importância. Às vezes não se controla bem o balanço do pé. Basta que o tacão do sapato não assente no lugar habitual para que se altere o movimento e a pressão. É simples.
      Distraído com o incidente, ainda não olhara o marcador da gasolina. Ter-lhe-iam roubado durante a noite, como já não era a primeira vez? Não. O ponteiro indicava precisamente meio depósito. Parou num sinal vermelho, sentindo o carro vibrante e tenso nas suas mãos. Curioso. Nunca dera por essa espécie de frémito animal que percorria em ondas a chapas da carroçaria e lhe fazia estremecer o ventre. Ao sinal verde, o automóvel pareceu serpentear, alongar-se como um fluido , para ultrapassar os que lhe estavam à frente. Curioso. Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o comum. Questão de boa disposição, esta agilidade dos reflexos hoje, talvez excepcional. Meio depósito. Se encontrasse um posto de abastecimento a funcionar, aproveitaria. Pelo seguro, com todas as voltas que tinha que dar antes de ir para o escritório, melhor de mais que de menos. Este estúpido embargo. O pânico, as horas de espera, filas de dezenas e dezenas de carros. Meio depósito. Outros andam a essa hora com muito menos, mas se for possível atestar. O carro fez uma curva balançada, e, no mesmo movimento,  lançou-se numa subida íngreme sem esforço. Ali perto havia uma bomba pouco  conhecida, talvez tivesse sorte. Como um perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito, voltou duas esquinas e ocupar espaço na fila que esperava. Boa lembrança.
       Olho o relógio. Deviam estar à frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que seria melhor ir ao escritório e deixar as voltas para a tarde, já cheio o depósito, sem preocupações. Baixou o vidro para chamar um vendedor de jornais que passava. O tempo arrefecera muito. Mas ali, dentro do automóvel, de jornal aberto sobre o volante, fumando enquanto esperava, havia um calor agradável, como o dos lençóis. Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora, e recostou-se melhor no assento. O jornal não prometia nada de bom. O embargo mantinha-se. Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos. Mas ele ainda dispunha de meio depósito e ao tardaria a té-lo cheio. O automóvel da frente avançou um pouco. Bem.
       Hora e meia mais tarde estava a atestar , e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava restrições rigorosas. Enfim, do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na fila da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou o rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo.
       De repente, o carro deu uma guinada e descaiu para a rua à direita, até parar numa fila de automóveis mais pequena do que a primeira. O que fora aquilo? Tinha o depósito cheio, sim, praticamente cheio, porque diabo de lembrança. Manejou a alavanca das velocidades para meter a marcha atrás, mas caixa não lhe obedeceu. Tentou forçar, mas as engrenagens pareciam bloqueadas. Que disparate. Agora avaria. O automóvel da frente avançou. Receosamente, a contar com o pior, engatou a primeira. Tudo perfeito. Suspirou de alívio. Mas como estaria a marcha atrás quando tornasse a precisar dela?
      Cerca de meia hora depois metia meio litro de gasolina no depósito, sentindo-se ridículo sob o olhar desdenhoso do empregado da bomba. Deu uma gorjeta absurdamente alta e arrancou num grande alarido de pneus e acelerações. Que diabo de ideia. Agora ao cliente, ou será uma manhã perdida. O carro estava melhor do que nunca. Respondia aos seus movimentos como se fosse um prolongamento mecânico do seu próprio corpo. Mas o caso da marcha atrás dava que pensar. E eis que teve que pensar mesmo. Uma grande camioneta avariada tapava todo o leito da rua. Não podia contorná-la, não tivera tempo, estava colado a ela. Outra vez a medo, manejou a alavanca, e a marcha atrás engrenou com um ruído suave de sucção. Não se lembrava de a caixa de velocidades ter reagido dessa maneira antes. Rodou o volante para esquerda, acelerou, e de um só arranco o automóvel subiu o passeio, rente aa camioneta, e saiu do outro lado, solto, com uma agilidade de animal. O diabo do carro tinha sete fôlegos. Talvez que por causa de toda essa confusão do embargo, tudo em pânico, os serviços desorganizados tiveram feito meter nas bombas gasolina de muito maior potência. Teria a sua graça.
       Olhou o relógio. Valeria ir ao cliente? Por sorte apanharia o estabelecimento ainda aberto. Se o trânsito ajudasse, sim, se o trânsito ajudasse, teria tempo. Mas o trânsito não ajudou. Tempo do Natal, mesmo faltando a gasolina, toda a gente vem para a rua, a empatar quem precisa de trabalhar. E ao ver uma transversal descongestionada, desistiu de ir ao cliente. Melhor seria explicar qualquer coisa no escritório o e deixar para tarde. Com tantas hesitações desviara-se muito do centro. Gasolina queimada sem proveito. Enfim, o depósito estava cheio. Num largo ao fundo da rua por onde descia viu outra fila de automóveis, à espera de vez. Sorriu de gozo e acelerou, decidido a passar roncando contra os entanguidos automobilistas que esperavam. Mas o carro, a vinte metros, obliquou para esquerda, por si mesmo, e foi parar, suavemente, como se suspirasse, no fim da fila. Que cisa fora aquela, se não decidira meter mais gasolina? Que coisa era, se tinha o depósito cheio? Ficou a olhar os diversos mostradores, a apalpar o volante custando-lhe a reconhecer o carro, e nessa sucessão de gestos puxou o retrovisor e olhou-se no espelho. Viu que estava perplexo e considerou que tinha razão. Outra vez pelo retrovisor distinguiu um automóvel que descia a rua, com todo o ar de vir colocar-se na fila. Preocupado com ideia de ficar ali imobilizado, quando tinha o depósito cheio, manejou rapidamente a alavanca para a marcha atrás. O carro resistiu e alavanca fugiu-lhe das mãos. No segundo imediato achou-se apertado entre seus dois vizinhos. Diabo. Que teria o carro? Precisava de leva-lo à oficina. Uma marcha atrás que funcionava ora sim ora não, é um perigo.
       Tinha passado mais de vinte minutos quando fez avançar o carro até à bomba. Viu chegar-se o empregado e a voz apertou-se-lhe ao pedir que atesta-se o depósito. No mesmo instante, fez uma tentativa para fugir à vergonha, meteu uma rápida primeira e arrancou. Em vão. O carro não se mexeu. O homem da bomba olhou desconfiado, abriu o depósito, e, passados poucos segundo, veio pedir o dinheiro de um litro, que guardou resmungando. No instante logo, a primeira entrava  sem qualquer dificuldade e  o carro avançava, elástico, respirando pausadamente. Alguma coisa não estaria bem no automóvel, nas mudanças, no motor, em qualquer sítio, diabo levasse. Ou estaria ele a perder a suas qualidades de condutor? Ou estria doente? Dormira ainda assim bem, não tinha mais preocupações da vida que em todos os outros dias dela. O melhor seria desistir por agora de cliente, não pensar neles durante o resto do dia e ficar no escritório. Sentia-se inquieto. Em redor de si, as estruturas do caro vibravam rapidamente, não à superfície, mas no interior dos aços, e o motor trabalhava com aquele rumor inaudível de pulmões enchendo e esvaziando, enchendo e esvaziando. Ao princípio, sem saber por quê, deu por que estava a traçar mentalmente um itinerário que o afastasse das outras bombas de gasolina, e quando percebeu o que fazia assustou-se, temeu-se de não estar bom da cabeça. Foi dando voltas, alongando e cortando caminho, até que chegou em frente ao escritório. Pôde arrumar o carro suspirou de alívio. Desligou o motor, tirou a chave e abriu a porta. Não foi capaz de sair.
       Julgou que a aba da gabardina se prendera, que a perna ficara entalada na coluna do volante, e fez outro movimento. Ainda procurou o cinto de segurança, a ver se o colocara sem dar por isso. Não. O cinto estava pendurado ao lado, tripa negra e mole. Disparate, pensou. Devo estar doente. Podia mexer livremente os braços e as pernas, flectir ligeiramente o tronco consoante as manobras, olhar para trás, debruçar-se um pouco para a direita, para o cacifo das luvas, mas as costas aderiam ao encosto do banco. Não rigidamente, mas como um membro adere ao corpo. Acendeu um cigarro, e de repente preocupou-se com o que diria ao patrão se assomasse a uma janela e o visse ali sentado, dentro do carro, a fumar, sem nenhuma pressa de sair. Um toque violento de claxon fé-lo fechar a porta, que abrira para a rua. Quando o outro carro passou, deixou descair lentamente a porta outra vez, atirou o cigarro fora e, segurando-se as mãos ambas ao volante, fez um movimento brusco, violento. Inútil. Nem sequer sentiu dores. O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava a acontecer? Puxou para baixo retrovisor e olhou-se. Nenhuma diferença no rosto. Apenas uma aflição imprecisa que mal se dominava. Ao voltar a cara para a direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se, enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina.
       Voltou a olhar no espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar, gente que o conhecia. Manobrou para desencostar, rapidamente, deixando a mão à porta para fechá-la, e desceu a rua o mais depressa que podia. Tinha um fito, um objectivo muito definido que j;a o tranqüilizava e tanto que se deixou ir com um sorriso que aos poucos lhe abrandara a aflição.
      Só reparou na bomba de gasolina quando lhe ia a passar pela frente. Tinha um letreiro que dizia "esgotado, e o carro seguiu, sem o mínimo desvio, sem diminuir a velocidade. Não quis pensar no carro. Sorriu mais. Estava a sair da cidade, eram já os subúrbios, estava perto o sito que procurava. Meteu por uma rua em construção, virou à esquerda e à direita, até uma azinhaga deserta, entre valados. Começava a chover quando parou o automóvel.
      A sua ideia era simples. Consistia em sair de dentro da gabardina, torcendo os braços e o corpo, deslizando para fora dela, tal como faz a cobra quando abandona a pele. No meio de gente não se atreveria, mas, ali, sozinho, com um deserto em redor, só longe a cidade que se escondia por trás da chuva, nada mais fácil. Enganara-se, porém. A gabardina aderia ao encosto do banco, do mesmo modo que ao casaco, à camisola de lã, à camisa, à camisola anterior, à pele, aos músculos, aos ossos. Foi isso que pensou não pensando quando daí a dez minutos se retorcia dentro do carro, a chorar. Desesperado. Estava preso no carro. Por mais que se torcesse para fora, para a abertura da porta, por onde a chuva entrava emperrada por rajadas súbitas e frias, por mais que fincasse os pés na saliência alta da caixa de velocidades, não conseguia arrancar-se do assento. Com as duas mãos segurou-se ao tejadilho e tentou içar-se. Era como se quisesse levantar o mundo. Diante dos seus olhos, os limpa-vidros, que sem querer pusera em movimento no meio da agitação, oscilavam com um ruído seco, de metrônomo. De longe veio o apito da fábrica. E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva escorria como sobre a pele de uma foca. O homem que pedalava olhou curiosamente para dentro do carro e seguiu, talvez decepcionado ou intrigado, por ver um homem sozinho, e não o casal que de longe lhe parecera.
       O que estava a passar-se era absurdo. Nunca ninguém ficara preso dessa maneira no seu próprio carro, pelo seu próprio carro. Tinha de haver um processo qualquer de sair dali. À força não podia ser. Talvez numa garagem? Não. Como iria explicar? Chamar a polícia? E depois? Juntar-se ia gente, tudo a olhar, enquanto a autoridade evidentemente o puxaria por um braço e pediria ajuda aos presentes, e seria inútil, porque o encosto do banco docemente o prenderia a si. E viriam os jornalista, os fotógrafos, e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte, cheio de vergonha como um animal tosquiado à chuva. Tinha de arranjar outra maneira. Desligou o motor e sem interromper o gesto atirou-se violentamente para fora, como quem ataca de surpresa. Nem um resultado. Feriu-se na testa e na mão esquerda, e a dor causou-lhe uma vertigem que se prolongou , enquanto uma súbita e irreprimível vontade de urinar se expandia, libertando interminável o líquido quente que vertia e escorria entre as pernas para piso do carro. Quando tudo isso sentiu, começou a chorar baixinho, num ganido, miseravelmente, e assim esteve até que um cão, vindo da chuva, veio ladrar-lhe, esquálido e sem convicção, à porta do carro.
        Embraiou devagar,  com os movimentos pesados de um sonho de cavernas, e avançou pela azinhaga fazendo força para não pensar, para não deixar que a situação se lhe figurasse num entendimento. De um modo vago sabia que teria de procurar alguém que o ajudasse. Mas quem poderia ser? Não queria assustar a mulher, mas não restava outro remédio. Talvez ela conseguisse. Ao menos não se sentiria tão desgraçadamente sozinho.
        Voltou a entrar na cidade, atento aos sinais, sem movimentos bruscos no assento, como se quisesse apaziguar os poderes que o prendiam. Passavam das duas horas e o dia escurecera muito. Viu três bombas de gasolina, mas o carro não reagiu. Todas tinham o letreiro de "esgotado". À medida que penetrava na cidade, ia vendo automóveis abandonados em posições anormais, com os triângulos vermelhos colocados na janela de trás, sinal que noutras ocasiões seria de avaria, mas que significava, agora, quase sempre, falta de gasolina. Por duas vezes viu grupos de homens a empurrar automóveis para cima dos passeios , com grandes gestos de irritação, debaixo da chuva que não parara ainda.
        Quando enfim chegou à rua onde morava, teve de imaginar como iria chamar a mulher. Parou o carro em frente da porta, desorientado, quase à beira doutra crise nervosa. Esperou que acontecesse o milagre de a mulher descer por obra e merecimento do seu silencioso chamado de socorro. Esperou muitos minutos, até que um garoto curioso da vizinhança se aproximou e ele pôde pedir-lhe, com o argumento de uma moeda, que subisse ao terceiro andar e dissesse à senhora que lá morava que o marido estava em baixo à espera, no carro. Que viesse depressa, que era muito urgente. O rapaz foi e desceu, disse que a senhora já vinha e afastou-se a correr, com o dia ganho.
       A mulher descera como sempre andava em casa, nem sequer lembrara de trazer um guarda-chuva e agora estava entreportas, indecisa, desviando sem querer os olhos para um rato morto na berma do passeio, para o rato mole, de pelo arrepiado, hesitando em atravessar o passeio debaixo da chuva, um pouco irritada contra o marido que a fizera descer sem motivo, quando poderia muito bem ter subido a dizer o que queria. Mas o marido acenava de dentro do carro e ela assustou-se e correu. Deitou a mão ao puxador, precipitando-se para fugir à chuva, e quando enfim abriu a porta e viu diante do seu rosto a mão do marido aberta empurrando-a sem lhe tocar. Teimou e quis entrar, mas ele gritou-lhe que não, que era perigoso, e contou-lhe o que acontecia, enquanto ela encurvada recebia nas costas toda a chuva que caía e os cabelos se lhe desmanchavam, e o horror lhe crispava a cara toda. E viu o marido, naquele casulo quente e embaciado que o isolava do mundo, torcer-se todo no assento para sair do carro e não conseguir. Atreveu-se a agarra-lo por um braço e puxou, incrédula, e não pode também move-lo dali. E como aqui era horrível demais para ser acreditado, ficaram calados a olhar-se, até que ela pensou que o marido estava doido e fingia não poder sair. Tinha de ir chamar alguém para o tratar, para o levar aonde as loucuras se tratam. Cautelosamente, com muitas palavras, disse ao marido que esperasse um bocadinho, que ela não tardaria, ia procurar ajuda para ele sair, e assim até poderiam almoçar juntos e ele telefonaria para o escritório a dizer que estava constipado. E não iria trabalhar da   parte da tarde. Quer sossegasse, o caso não tinha importância, a aver que não demora nada.
        Mas quando ela desapareceu na escada, ele tornou a imaginar-se rodeado de gente, o retrato nos jornais, a vergonha de se ter urinado pelas pernas abaixo, e esperou ainda uns minutos. E quando em cima a mulher fazia telefonemas para toda a parte, para a polícia, para o hospital, lutando para que acreditassem nela, e não na sua voz, dando seu nome e o do marido, a cor do carro, e a marca, e a matrícula, ele não pôde agüentar a espera e a imaginação, e ligou o motor. Quando a mulher tornou a descer, o automóvel já desaparecera e o rato escorregara da berma do passeio, enfim, e rolava na rua inclinada, arrastado pela água que corria dos algeroses. A mulher gritou, mas as pessoas tardaram a aparecer e foi muito difícil de explicar.
        Até o anoitecer o homem circulou pela cidade, passando por bombas esgotadas, entrando em filas de espera sem o ter decidido, ansioso por o dinheiro se lhe acabava e ele não saberia o que poderia acontecer quando não houvesse mais dinheiro e o automóvel parasse ao pé duma bomba para receber mais gasolina. E isso só não aconteceu porque todas as bombas começaram a fechar e as filas de espera que ainda se viam apenas aguardando o dia seguinte, e então o melhor era fugir de encontrar bombas ainda abertas para não ter que parar. Numa avenida muito longa e larga, quase sem outro trânsito, o carro da polícia acelerou e ultrapassou-o, e quando o ultrapassava um guarda fez-lhe sinal para que parasse. Mas ele teve outra vez medo e não parou. Ouviu atrás de si a sereia da polícia e viu, também, vindo não soube donde, um motociclista fardado quase a alcançá-lo. Mas o carro, o seu carro, deu um rondo, um arranco poderoso e saiu, de um salto, logo adiante, para o acesso duma auto-estrada. A polícia seguia-o de longe, cada vez mais longe, e quando a noite se fechou não havia sinais deles, e o automóvel rolava por outra estrada.
         Sentia fome. Urinara outra vez, humilhado demais para se envergonhar e delirava um pouco: humilhado, himolhado. Ia declinando sucessivamente, alterando as consoante e as vogais, num exercício in consciente e obsessivo que o defendia da realidade. Não parava porque não sabia para que iria parar. Mas, de madrugada, por duas vezes, encostou o carro a berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altuar de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixa-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir.
         Toda a noite viajou sem saber por onde. Atravessou povoações de que não viu o nome, percorreu longas rectas, subiu e desceu montes, fez e desfez laços e deslaços de curvas, e quando a manhã começou a nascer estava em qualquer parte, numa estrada arruinada, onde a água da chuva se juntava em charcos arrepiados à superfície. O motor roncava poderosamente , arrancando as rodas à lama, e toda a estrutura do carro vibrava, com um som inquietante. A manhã abriu por completo, sem que o sol chegasse a mostrar-se, mas a chuva parou de repente. A estrada transformava-se num simples caminho, que adiante, a cada momento, parecia que se perdia entre pedras. Onde estava o mundo? Diante dos olhos eram serras e um céu espantosamente baixo. Ele deu um grito e bateu com os punhos cerrados no volante. Foi nesse momento que viu que ponteiro do indicador da gasolina estava em cima do zero. O motor pareceu arrancar-se a si mesmo e arrastou o carro por mais vinte metros. Era outra vez estrada para lá daquele lugar, mas a gasolina acabara.
        A testa cobriu-se-lhe de suor frio. Uma náusea agarrou nele e sacudiu-o dos pés a cabeça, um véu cobriu-lhe por três vezes os  olhos. Às apalpadelas, abriu a porta para se libertar da sufocação que aí vinha, e nesse movimento, por que fosse morrer ou porque o motor morrera, o corpo pendeu para o lado esquerdo e escorregou do carro. Escorregou um pouco mais, e ficou deitado sobre as pedras. A chuva recomeçara a cair.

José Saramago