terça-feira, 2 de novembro de 2010

A simplicidade de Saramago, tão humanamente monumental
Saramago escrevia como se fosse um camponês: preparava a terra, adubava-a, limpavaa,
semeava. Tudo a seu tempo, duas páginas por dia, sem impaciências, sem omitir um
sulco, uma responsabilidade. Às vezes tinha que deixar descansar a terra, e então
aproveitava para pôr em dia a correspondência com os amigos, tarefa nunca acabada,
lia, relia, ia às escolas e às universidades que insistentemente solicitavam a sua
presença, como em Mafra, apresentava livros em países que lhe eram mais próximos
emocionalmente, militava, ainda que este militar, militar como cidadão, fosse, como o
pão, coisa de cada dia. Saramago não desfalecia nunca, por isso os seus livros têm,
como a espiga colhida, tanto para dar de comer. Que é uma necessidade de todos,
comer, ler.
Perguntam-me de onde tirava Saramago tempo para tanta declaração pública, para tanta
acumulação de trabalho, para tanto emprestar a sua voz. Eu sei-o, vi: tirava tempo do
seu espírito, talvez por isso se lhe se consumiu a carne. José Saramago era um pioneiro,
estava possuído por um afã de não repetir, de começar a cada dia um caminho, porque
nunca sabemos qual será aquele que nos leve aonde nos esperam. Tão-pouco sabemos o
que nos espera, a não ser a morte, mas esse destino, morrer, é o único que temos
assegurado, por isso Saramago se empenhava a cada amanhecer em conquistar a vida,
fazer dela algo digno, ou melhor, estar nela como se tivéssemos que ganhar a dignidade
porque o facto de viver é uma responsabilidade de que não podemos abdicar. Viver não
é o mesmo que deixar-se viver, Saramago sabia-o com o seu próprio saber e esteve
consciente dessa obrigação até ao último minuto. Dias antes do que haveria de ser o
último, falando da crise económica com vários amigos, Saramago disse algo que
poderia ser uma boa bússola para nos orientarmos por estas turbulências tão
ameaçadoras quanto tenebrosas. Disse-nos que todos, governos e cidadãos, sabemos o
que temos de fazer para sair da crise, que para mudar a vida teríamos que mudar de
vida. E acrescentou que se não intervimos já, todos, governos e cidadãos, a crise será
cada vez mais profunda, porque não será económica, será uma crise moral.
Mudar de vida para mudar a vida. Fazer do progresso um êxito do humanismo, não do
capital. Fazer da economia uma ciência moral que não nos diga por que sobem os
preços mas antes um instrumento que ensine como impedir que os preços subam de tal
maneira que logo tudo seja exploração, os pobres cada vez mais pobres, os países
hipotecando-se em vez de deixarem de dever aos cidadãos e a soberania não radicando
no povo mas em instituições distantes, obscuras, inalcançáveis.
Saramago era um escritor literário com muitos leitores, milhões de leitores em todo o
mundo, que o amavam e lho diziam. Mas era também um cidadão consciente, por isso
lhe diziam tantas vezes: «és a minha voz, fala tu, que podes», ou «o que vai ser de nós
quando te fores embora, da nossa comunidade perseguida e agredida». Sim, recorriam a
Saramago como última instância, como último recurso, reclamavam-no Timor ou as
comunidades zapatistas do México, ou as Mães contra a droga, ou os índios mapuches
despojados dos seus territórios e condenados à ignomínia, ou os Homens pela
igualdade, ou os jovens que procuram recuperar a sua memória desenterrando das valas
onde a iniquidade mantém os seus avós assassinados pela guerra civil espanhola, ou os
saauris sem Estado, ainda que com todas as declarações internacionais a seu favor, ou os
palestinos humilhados na que é também a sua terra, ou a que foi a sua última causa, os
sem-papéis franceses, ameaçados e depois expulsos de França. Saramago atendia
sempre a quem o reclamasse e se apresentasse com predicativos humanos, por isso era
tratado com displicência pelos que praticam a ideologia da insolência e do cinismo.
Ir à Lua ou a Marte são projectos bons, mas antes há que chegar ao outro, como disse
Saramago no dia em que recebeu o Nobel, perante o assombro de tantos que pensavam
que o discurso era para dizer umas coisas engraçadas. Mas o escritor, o cidadão,
aproveitou o facto de se cumprirem 50 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e não deixou passar a ocasião, solene, primordial, contando um facto
divertido da sua vida se podia, em vez disso, dar a notícia ao mundo. Saramago disse
naquela noite há doze anos, em Estocolmo, algo que ainda hoje é mais urgente:
«As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância
cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica Humanidade que é capaz de enviar
instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste
indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte
neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.»
Saramago estava a escrever um livro quando morreu, mas também tinha em mãos algo
que outros terão que terminar. Pedimos-lhe, a sua Fundação, a Fundação José
Saramago, dissemos-lhe que elaborasse a Carta dos Deveres Humanos e que com ela
iríamos por aí, de esquina em esquina, com a nossa modéstia e a nossa tremenda
ousadia. Não teve tempo de terminá-la, alguém terá de fazê-lo, alguém com arrojo e
dedicação, alguém tão imprescindível como Saramago, com uma generosidade tão
furiosamente humana.
José Saramago ergueu o nosso tempo e deu-lhe personalidade. Também a nós, com a
sua obra e com o seu discurso, nos infunde alento para seguir em frente e para construir
outros monumentos, talvez não o Convento de Mafra, que já aí está, talvez outros
capazes de albergar a harmonia necessária para viver a nossa humana condição. A que
partilhamos com José Saramago, nosso contemporâneo.

Pilar del Río

Este mês de Novembro, no dia 16, José Saramago cumpriria 88 anos. Cumpri-los-á, porque José Saramago continua a habitar em muitos leitores e, como alguém disse, também nos corações das pessoas, para além de na bibliotecas. Por todo o mundo se realizarão actos, dos quais iremos dando conta. Começamos assinalando alguns:
"Novembro, Mês de Saramago",
Mafra 
O primeiro nome convidado é o de Pilar del Río. Esta é a sua colaboração:

Um comentário:

  1. Os artistas são mesmo "para sempre"...eles vivem em nosso coração, em nosso pensamento, até em muitos atos nossos, pela transformação que podem exercer...Como seria triste o mundo sem os artistas....

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